DECADÊNCIA DO DIREITO DO INSS REVER OS BENEFÍCIOS DOS EX-COMBATENTES
- proteção da confiança x legalidade -
A proteção previdenciária dos ex-combatentes surge com a Lei 4.297, de 23 de dezembro de 1963, com a garantia de aposentadoria, aos 25 anos de serviço, no valor correspondente à média das remunerações dos últimos 12 meses antes da concessão (art. 1º), com reajuste paritário aos trabalhadores ativos da mesma categoria (art. 2º). A lei ainda garantia a pensão por morte no valor de 70% do salário ou dos proventos auferidos pelo ex-combatente (art. 3º).
Entretanto, a Lei 5.698, de 31 de agosto de 1971, revogou a Lei 4.297/63, para aproximar os benefícios dos ex-combatentes aos demais garantidos pelo Regime Geral de Previdência Social, ficando estabelecidas apenas duas peculiaridades: (a) tempo de serviço de 25 anos; e (b) auxílio-doença e aposentadoria de qualquer espécie com renda mensal de 100% do salário-de-benefício.
Destarte, a aposentadoria do ex-combatente passou a ser calculada com base na média dos 36 maiores salários-de-contribuição e a ficar limitada ao teto do Regime Geral de Previdência Social, correspondente à época a 10 salários mínimos. Porém, em atenção ao princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios, o segurado que já percebia aposentadoria com renda superior ao teto não teve seu benefício reduzido (art. 4º), apesar de ter tido congelada a parcela da renda superior ao limite legal (art. 5º). A sistemática legal é perfeita: admite a mudança do critério de reajuste da aposentadoria, por ser tratar de regime jurídico; mas não autoriza a redução nominal do benefício.
Uma nova alteração relevante na disciplina normativa dessas prestações ocorre com o art. 53 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que garante ao ex-combatente uma aposentadoria com proventos integrais, aos 25 anos de serviço, em qualquer regime jurídico. Surge, então, uma dúvida quanto ao significado da expressão “proventos integrais”.
Em um primeiro momento, a Administração Pública entendeu que a indigitada expressão corresponderia ao valor integral da última remuneração, ultrapassando o teto previdenciário. Vale destacar que, mesmo quando a limitação dos benefícios do Regime Geral ganhou status constitucional, com a Emenda 20/98, o INSS e o Ministério da Previdência Social insistiram no entendimento de que a previsão do art. 53 do ADCT determinava o pagamento sem a aplicação do teto, como se infere do Parecer/CJ nº 2.017, de 01 de fevereiro de 2000:
"Sendo assim, não cabe a aplicação do teto de R$ 1.2000,00 (mil e duzentos reais) fixado pelo art. 29, § 2º, da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1.991 e pela Emenda Constitucional nº 20, de 16 de dezembro de 1.998, que a princípio deveria ser aplicada a todos os segurados do Regime Geral de Previdência Social.
Os benefícios pagos a ex-combatentes são exceções a regra geral. Estabelecem um tempo de serviço menor, 25 (vinte e cinco) anos, e o pagamento de proventos integrais, reitera-se.
Ante o texto constitucional expresso determinando que estas aposentadorias tenham o valor integral da última remuneração dos beneficiários, ou seja, de seus salários na atividade, não é possível estabelecer o limite aplicado aos demais segurados do RGPS."
Entretanto, no Parecer/CJ nº 3.052, de 06 de maio de 2003, o Ministério da Previdência Social mudou de opinião e passou a sustentar “que o termo ‘proventos integrais’ inserto no citado dispositivo constitucional não estabelece forma de cálculo ou reajuste de benefício previdenciário, pelo que a integralidade dos proventos ali referida não corresponde à integralidade da remuneração do beneficiário, se na ativa estivesse. Assim, os proventos integrais assegurados no texto constitucional são os que a legislação previdenciária estabelece como tais”. Desse modo, afirmou:
A conclusão do parecer de 2003 está correta. O art. 53 do ADCT não garante a concessão do benefício calculado com integralidade, mas com proventos integrais. Fosse garantida a integralidade, a base de cálculo seria a última remuneração. Porém, como o texto constitucional fala em proventos integrais, apenas garante o coeficiente de cálculo de 100%, sem especificar a sobre que valor incidirá, remetendo, por conseqüência, à legislação vigente à época aquisição do direito.
Ocorre que diversos benefícios foram concedidos há muitos anos de acordo com a sistemática anterior. Amparados pelo posicionamento da Administração Pública, os beneficiários receberam – com absoluta boa-fé – uma renda mensal superior a teto previdenciário.
O valor dos benefícios estava em desacordo com a melhor interpretação do art. 53 do ADCT, uma vez que deveria obedecer às limitações do Regime Geral de Previdência Social. Entretanto, o erro foi provocado pela Administração Pública, sem que o segurado tivesse contribuído em qualquer medida para a materialização do equívoco. Ao contrário, como esse era o entendimento adotado pelo INSS, tinha a legítima expectativa de contar com proventos apurados na forma indicada pela Administração à época.
Ocorre que, buscando dar efeitos retroativos ao seu novo entendimento, o INSS passou a rever uma série de aposentadorias e pensões concedidas sem a limitação ao teto.
Evidentemente, é legítimo o esforço da Administração Pública para controlar seus atos já emitidos, sendo seu poder-dever a anulação de atos administrativos ilegais. Ocorre que o princípio da legalidade deve ser ponderado com o da confiança legítima, criando limites à atividade estatal de auto-tutela, como a fixação de prazos para que a Administração reveja seus próprios atos.
Inicialmente, o prazo foi fixado em 05 (cinco) anos, pela Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Posteriormente, a Lei º 10.839, de 05 de fevereiro de 2004, cria prazo específico, de 10 (dez) anos, para Previdência Social anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus beneficiários (art. 103-A, Lei nº 8.213/91).
Isso quer significar que após o prazo decenal consolidada-se o direito ao recebimento de um benefício superior ao teto da previdência social, sem que o INSS possa rever o critério de cálculo da renda mensal inicial ou passe a limitá-lo com base no valor máximo das demais prestações previdenciárias. Em resumo: é proscrito à autarquia rever a renda do benefício.
A questão ganha ares mais complexos quando se trata de uma pensão por morte. Com o óbito do segurado, os dependentes adquirem o direito a uma pensão, calculada com base na aposentadoria. Surgem, então, algumas perguntas: a decadência do direito de revisão do ato de concessão da aposentadoria continua a existir após o óbito do segurado? É possível, para conceder uma pensão por morte, rever a renda da aposentadoria precedente, ainda que sua concessão tenha ocorrido há mais de 10 anos?
A resposta deve ser negativa. A pensão deve ser calculada de acordo com a lei vigente à época do óbito. Se o INSS não podia rever o valor da aposentadoria, o benefício do dependente tem que se apurado tendo como base de cálculo a renda previdenciária para ao ex-combatente. Isso ocorre por dois motivos: (a) autorizar a revisão da renda da aposentadoria seria uma afronta ao comando legal que “pune” a inércia da Administração por mais de 10 anos; e (b) ao deixar de revisar a renda da aposentadoria, o INSS gerou expectativa legítima na dependente que não pode, agora, ser surpreendida por uma medida extremamente restritiva, capaz de colocar em xeque projetos de vida alimentados pela postura administrativa antecedente.
O princípio da confiança (ou da confiança legítima), corolário da segurança jurídica, assume especial importância no Direito Administrativo e, por conseguinte, no Direito Previdenciário. Isso porque, tendo em vista a presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, cria-se no cidadão a expectativa de que a conduta da Administração Pública seja válida. Nas palavras de Gustavo Binenbojm:
O ponto nodal da questão está na circunstância de que o cumprimento da lei administrativa é, via de regra, mediado pela Administração Pública. Dito de outra forma, é a Administração normalmente responsável pela aplicação (mais ou menos mecânica, mais ou menos construtiva, conforme a disciplina da lei) dos comandos legais. Como condição para o desempenho de seus misteres, admite-se que os atos administrativos – como as leis – desfrutam de uma presunção de legitimidade, que despertam nos particulares, de ordinário, uma legítima confiança de que tenham sido editados em conformidade com o direito.
Pois bem. Tendo agido subjetivamente de boa-fé (boa-fé subjetiva), confiando legitimamente em uma situação digna de confiança gerada pelo Poder Público (standard de comportamento leal e confiável médio que se aproxima da boa-fé objetiva) e tendo orientado efetivamente a sua conduta em conformidade com essas premissas, não é justo, em maioria de casos, que essa confiança legítima do particular seja frustrada por uma mudança de posição do Estado – seja ela decorrente da invalidação de um ato administrativo ilegal ou da declaração de inconstitucionalidade de uma lei.
(BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 181-182.)
Evidentemente, infere-se a necessidade de boa-fé subjetiva para que a expectativa seja legítima e tutelável. Em outras palavras, é necessário que o administrado acredite, realmente, na legalidade do ato da administração. Hartmut Maurer ensina:
Pressuposto para a proteção à confiança – tanto em notificações de prestação pecuniária como em outros atos administrativos – é que o beneficente (1) confiou na existência do ato administrativo e (2) sua confiança seja digna de proteção sob a ponderação com o interesse público em uma retratação. Essa fórmula geral ainda é concretizada pela lei em sentido diferente. A dignidade de proteção não tem lugar de antemão se o beneficiado obteve o ato administrativo antijurídico por engano, ameaça ou corrupção dolosa, ademais se ele obteve o ato administrativo por declarações falsas ou incompletas, enfim, também então, se ele conhecia a antijuridicidade cai no âmbito da responsabilidade do favorecido.
(MAUERER, Harmut. Elementos de direito administrativo alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegra: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 72-73.)
Na maior parte dos casos, pensionistas e instituidor da pensão manifestam absoluta boa-fé subjetiva, uma vez que pautaram sua expectativa no comportamento da Administração Pública que, de modo fundamentado (apesar de equivocado) adotava critério distinto para o cálculo do benefício.
Desse modo, deve o benefício continuar a ser calculado tendo como base de cálculo da renda mensal da aposentadoria do segurado falecido, mesmo que superior ao teto do Regime Geral de Previdência Social.
A questão, todavia, ainda é carente de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que, todavia, já reconheceu a repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 699.535, o qual deverá fornecer uma resposta definitiva ao problema.
Nenhum comentário:
Postar um comentário