Resumo
O presente trabalho aborda questões relacionadas à pensão por morte devida ao cônjuge divorciado, separado judicialmente ou de fato, por meio de análise jurisprudencial e doutrinária, tanto no Direito Previdenciário, quanto no Direito de Família. Alguns tópicos ganham especial atenção: os requisitos para a caracterização da qualidade de dependente, a situação do cônjuge separado de fato, a fixação de critérios racionais para a aplicação do verbete 336 da súmula da jurisprudência dominante do STJ, bem como, o valor da cota de pensão devida ao ex-cônjuge.
Palavras-chave
Pensão por morte. Cônjuge. Divorciado. Separado.
Sumário
1. Introdução. 2. Cônjuge separado de fato. 3. Renúncia aos alimentos: conteúdo do verbete 336 da súmula da jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. 4. Cota da pensão do ex-cônjuge. 5. Conclusão.
1. Introdução
A pensão por morte é a prestação previdenciária destinada a tutelar os beneficiários no caso de morte do segurado de quem dependiam. Seu objetivo, portanto, é substituir o rendimento do provedor falecido, garantindo aos seus dependentes uma prestação pecuniária.
A proteção contra o risco social “morte” extrai fundamento de validade constitucional do art. 201, I e V, da Constituição da República, e está prevista nos artigos 74 a 79 da Lei 8.213/91.
Além do aspecto material da hipótese de incidência previdenciária (morte comprovada ou presumida), são necessários outros dois requisitos, no momento do óbito, para o surgimento do direito à prestação: (a) qualidade de segurado do instituidor ou, ao menos, direito adquirido a um benefício; e (b) qualidade de dependente de quem pleiteia a pensão.
Logo, por um lado é fundamental verificar se, ao morrer, a pessoa mantinha sua qualidade de segurado, ainda que em razão do período de graça. Todavia, mesmo com a perda dessa qualidade, o aspecto pessoal da hipótese de incidência pode ser preenchido, se o instituidor da pensão falecer com direito adquirido a algum benefício do Regime Geral de Previdência Social
[1].
No que tange à qualidade de dependente, faz-se mister a inclusão do postulante em uma das hipóteses do art. 16 da Lei 8.213/91, caracterizando, de forma presumida ou comprovada, a sua dependência em relação ao segurado falecido.
Há uma categoria, todavia, que não consta expressamente no rol do art. 16, mas é elevada à condição de dependente por força do § 2º do art. 76 da Lei 8.213/91: cônjuge divorciado, separado judicialmente ou de fato que recebia pensão de alimentos.
Em razão de alterações do tratamento legislativo e por força de sua situação peculiar, a pensão por morte ao ex-cônjuge apresenta alguns desafios à doutrina e à jurisprudência, que muitas vezes divergem sobre as soluções para alguns conflitos entre o Instituto Nacional do Seguro Social, o ex-cônjuge e os demais beneficiários da pensão previdenciária.
Este trabalho destina-se a abordar algumas dessas controvérsias, comparando os posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários, bem como, buscando oferecer contribuição para o debate. Analisar-se-á, pois, três temas: (a) quem é o ex-cônjuge? Qual é a situação do separado de fato? (b) Qual o verdadeiro conteúdo do verbete 336 da súmula da jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, a respeito da renúncia aos alimentos na separação judicial? (c) Como ocorre a divisão da pensão entre o ex-cônjuge e os demais dependentes?
2. Cônjuge separado de fato A Lei 8.213/91 elege o cônjuge como dependente da primeira classe, juntamente com a companheira, o companheiro e o filho menor de 21 anos ou inválido (art. 16, I). Por força do § 4º do art. 16, a sua dependência econômica em relação ao segurado é presumida, não precisando de comprovação para dar origem à pensão por morte.
Tal previsão encontra-se em harmonia com o Direito de Família, uma vez que o art. 1.566, III do Código Civil estabelece como obrigação dos cônjuges a “mútua assistência”, sendo certo que ambos são “obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família” (CC art. 1568). Assim, parece plenamente justificável reconhecer, de forma presumida, a mútua dependência econômica entre os cônjuges. Essa, aliás, parece ser a intenção da Constituição da República ao fixar, como uma das diretrizes da Previdência Social, a “pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes” (art. 201, V). O texto constitucional destaca o cônjuge e o companheiro dos demais dependentes, demonstrando que a dependência econômica fática tem pouca relevância em relação a eles, uma vez que em um casamento (e em uma união estável) existe sempre a dependência recíproca, fruto do dever de mútua colaboração.
Com o fim do casamento, todavia, a garantia ampla e genérica de colaboração é substituída pelo dever prestar alimentos, em caso de necessidade. Quando esta não estiver presente, não haverá dever de custeio das despesas do antigo cônjuge. Destaca-se que, apesar do casamento válido apenas se dissolver com a morte ou com o divórcio (CC Art. 1571, § 1º), tanto este quanto a separação judicial são causas de extinção da sociedade conjugal (CC Art. 1571, III e IV), colocando fim ao dever pleno de mútua colaboração e substituindo-o pela prestação de alimentos.
Por esse motivo, na relação previdenciária, o cônjuge divorciado ou separado judicialmente, em princípio, apenas tem direito à pensão por morte se comprovar o recebimento de alimentos (Lei 8.213/91 art. 76, § 2º).
Situação delicada, em razão de sua natureza híbrida, é a do cônjuge separado de fato. Afinal, se, por um lado, não houve a dissolução da sociedade conjugal, por outro, inexiste a comunhão de vida entre os cônjuges. A situação legal de cônjuge é suficiente para garantir a presunção de dependência econômica? Ou há necessidade de comprovar o recebimento de alimentos para fazer jus à pensão previdenciária?
A jurisprudência não é uníssona sobre o assunto. Há precedentes afirmando que o benefício previdenciário tutela a condição legal de cônjuge, pouco importando uma eventual separação de fato. Assim, os cônjuges separados de fato seriam equiparados àqueles que mantêm vida em comum, enquadrando-se na hipótese do § 4º do art. 16 da Lei 8.213/91
[2]. Contribui para esse entendimento o art. 17, I do Decreto 3.048/99: “A perda da qualidade de dependente ocorre: I – para o cônjuge, pela separação judicial ou divórcio, enquanto não lhe for assegurada a prestação de alimentos ...” Ao não mencionar a separação de fato como causa de extinção da condição de dependente, o dispositivo parece considerá-la irrelevante para tal fim.
Todavia, apesar de inexistir a extinção da sociedade conjugal, não se pode ignorar as conseqüências da separação de fato. Precisas são as palavras de Yussef Said Cahali:
Certo é, porém, que, atentas às circunstâncias caracterizadoras do ilícito abandono do lar por este ou por aquele cônjuge, daí resulta um estado de semidissolução, a sugerir o problema da manutenção ou dispensa do cumprimento do dever de assistência, sob a forma de prestação alimentícia, pois, separados os cônjuges, por cessada de fato ou de direito a convivência sob o mesmo teto, a obrigação de socorro e assistência entre eles resolve-se na obrigação específica de prestação de alimentos entre ambos, adquirindo, assim, um conteúdo próprio; a separação de fato representa uma condição para que aquela obrigação originária difusa degenere em obrigação alimentar.[3] O próprio Direito de Família, portanto, reconhecendo a semidissolução da sociedade conjugal gerada pelo fim da convivência na separação de fato, afirma que com o abandono do lar o dever de mútua colaboração converte-se em obrigação alimentar. Entretanto, como afirma o § 1º do art. 1.694 do Código Civil, esta só existirá em caso de necessidade e possibilidade
[4].
Se a prestação alimentícia decorre da comprovação de necessidade, por que o benefício previdenciário dispensaria esse requisito? Amparada nesse raciocínio, a Lei 8.213/91, no § 2º do art. 76, equipara o cônjuge separado de fato ao divorciado e ao separado judicialmente, condicionando a concessão da pensão por morte ao recebimento da pensão alimentícia. Assim, segundo o texto legal, apenas o cônjuge separado de fato que recebia pensão alimentícia terá direito à prestação da Previdência Social.
O dispositivo legal parte da premissa de que havendo, durante a vida do segurado, dependência econômica do cônjuge separado de fato este estaria recebendo pensão alimentícia. O legislador baseou-se, assim, em uma situação ideal e lógica: se é devida pensão alimentícia ao cônjuge separado de fato que depende economicamente do segurado vivo, todos os que se encontrem nessa situação recebem pensão alimentícia; por outro lado, onde inexistir a dependência econômica, não haverá alimentos. Logo, para a lei, todos os cônjuges separados de fato que dependem economicamente do segurado, necessariamente, estariam recebendo pensão alimentícia durante a vida daquele.
Olvidou-se o legislador, todavia, das situações em que o cônjuge separado tem direito à pensão alimentícia – pois depende economicamente do segurado – mas não o exerce, sobrevivendo sem a prestação alimentar. Em situações como essa, tão freqüentes em nossa realidade social, o que deve prevalecer para aferição do direito ao benefício previdenciário? O efetivo recebimento da pensão alimentícia ou o direito, ainda que não exercido, de receber a prestação alimentar?
Parece ter ocorrido efetiva omissão do texto legal, que deve ser integrado a fim de se fixar a seguinte orientação: a pensão por morte é devida ao cônjuge separado de fato, desde que comprove que dependia economicamente do segurado. Caso tenha ocorrido o pagamento de pensão alimentícia pelo segurado até o momento do óbito, está comprovada a dependência. Porém, mesmo sem o pagamento dos alimentos, é possível comprovar por outros meios a dependência econômica existente ao tempo da morte.
Essa parece ter sido a orientação firmada pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 411194/PR
[5]:
PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. CÔNJUGE SUPÉRSTITE. SEPARAÇÃO DE FATO. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. REEXAME DE PROVA. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. O cônjuge supérstite goza de dependência presumida, contudo, estando separado de fato e não percebendo pensão alimentícia, essa dependência deverá ser comprovada.
2. O Tribunal a quo, ao reconhecer a inexistência de comprovação da dependência, o fez com base na análise dos elementos probatórios carreados aos autos. Incidência, à espécie, da Súmula 7/STJ.
3. Recurso especial a que se nega provimento.
A necessidade econômica, aliás, parece ser o elemento central da discussão sobre a pensão por morte ao ex-cônjuge. É o que se passa a analisar.
3. Renúncia aos alimentos: conteúdo do verbete 336 da súmula da jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça aprovou, em 25/04/2007, um verbete da súmula de sua jurisprudência dominante com o seguinte enunciado:
Verbete nº 336 - A mulher que renunciou aos alimentos na separação judicial tem direito à pensão previdenciária por morte do ex-marido, comprovada a necessidade econômica superveniente.[6],
[7] O indigitado enunciado foi inspirado no entendimento daquela Superior Corte de Justiça a respeito do § 2 do art. 76 da Lei 8.213/91, sobre o qual já traçamos algumas considerações no item anterior
[8]. O texto legal afirma que será dependente o ex-cônjuge (cônjuge divorciado, separado judicialmente ou de fato) “que recebia pensão de alimentos”.
Apesar da importância da súmula, por destacar a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, alguns pontos merecem ser esclarecidos: (a) o recebimento de alimentos – ainda que não formalmente estabelecidos – condiciona o direito à pensão? (b) O verbete é aplicado também aos casos de divórcio? (c) Até qual momento dever surgir a “necessidade econômica superveniente”?
Poder-se-ia imaginar que, apesar da renúncia aos alimentos, o direito à pensão ao ex-cônjuge ficaria condicionado à prestação alimentícia de modo informal. Como exemplo, cita-se um caso em que houve renúncia aos alimentos na separação, mas o segurado, por liberalidade, continuou a pagar o aluguel e as contas do ex-cônjuge. Assim, mesmo com a renúncia formal, no plano fático os alimentos foram prestados, não podendo surgir dúvidas em relação ao direito ao benefício.
Questão diversa ocorre quando o segurado não presta alimentos, mas existe a necessidade econômica do cônjuge separado judicialmente. Como já concluímos anteriormente (ao tratarmos da separação de fato), o texto legal pressupõe que o ex-cônjuge com dependência econômica do segurado receba pensão alimentícia. Assim, segundo o raciocínio do legislador, amparado nas normas do Direito de Família, sempre que houvesse necessidade, o segurado prestaria alimentos ao ex-cônjuge. De acordo com a lógica adotada, a necessidade econômica durante a vida do segurado, necessariamente conduziria ao pagamento de prestação alimentícia. Logo, pela ótica do legislador, falar em necessidade econômica ou em pagamento de pensão significaria o mesmo.
A presunção legal, entretanto, cede diante da realidade social. Afinal, não são raros os casos em que, apesar da necessidade, o ex-cônjuge não exerce o direito aos alimentos. Por esse motivo, os tribunais, extraindo o verdadeiro sentido da norma, superam a redação literal do dispositivo, para afirmar que a pensão é devida mediante a comprovação da necessidade econômica, independentemente do pagamento da pensão
[9].
A questão, entretanto, ganha outro contorno quando o ex-cônjuge renuncia à pensão alimentícia. Nesse caso, é curioso (e paradoxal) o posicionamento jurisprudencial, que é mais generoso com o ex-cônjuge após a morte do segurado, que durante a vida deste. Afinal, ao decidir causas relacionadas ao Direito de Família, o Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento de que a irrenunciabilidade dos alimentos é restrita às relações de parentesco em sentido estrito (CC art. 1591 e art. 1592). Como cônjuges apenas são parentes por afinidade (CC art. 1595), é perfeitamente válida a cláusula de renúncia aos alimentos em uma separação judicial
[10],
[11] [12]. Logo, diante da renúncia, o cônjuge separado judicialmente não tem direito a pleitear pensão ao ex-cônjuge. Mas, no Direito Previdenciário, reconhece-se o dever do INSS de pagar pensão pela morte do segurado ao ex-cônjuge que renunciou aos alimentos.
O objetivo do presente trabalho, todavia, não é criticar o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, mas estabelecer conclusões coerentes a partir do entendimento firmado por aquela Corte. Logo, o posicionamento jurisprudencial é no sentido de considerar devido o benefício desde que haja necessidade econômica posterior à renúncia dos alimentos na separação judicial. Isso significa que se ampliou a possibilidade do ex-cônjuge receber o benefício. Ao invés de comprovar a dependência econômica, basta demonstrar a necessidade.
Em outras palavras: ao afirmar a desnecessidade de fornecimento de alimentos, mesmo que por liberalidade, a jurisprudência deixa claro que não é necessária a dependência econômica. Afinal, só posso afirmar que existe dependência, se a necessidade for (ou devesse ser) atendida por uma prestação do segurado. Havendo necessidade sem que o ex-cônjuge contribua para o seu atendimento, não se pode falar em dependência econômica.
De acordo com o enunciado do Superior Tribunal de Justiça nº 336, deve ser dispensada a exigência de dependência, pois o requisito é de mera necessidade. Logo, se o ex-cônjuge passa a vivenciar dificuldades econômicas, mesmo que o segurado nunca tenha contribuído para o seu sustento, haverá direito à pensão
[13]. Responde-se, desse modo, à primeira indagação sobre a súmula: o recebimento de alimentos – ainda que não formalmente estabelecidos – não condiciona o direito à pensão.
Outro ponto da súmula que chama a atenção é o fato de mencionar, apenas, os casos de separação judicial, deixando margem à dúvida relacionada às situações em que o cônjuge divorciado tenha dispensado os alimentos. O problema é que, apesar da jurisprudência majoritária no Direito de Família conferir ao cônjuge divorciado o mesmo tratamento dado ao separado judicialmente no que tange à renúncia de alimentos
[14], existe quem defenda um tratamento diferenciado, afirmando que a irrenunciabilidade apenas cessará com o divórcio
[15], quando ocorre a dissolução do casamento. Em outras palavras, se por um lado a jurisprudência nega, tanto para o divorciado quanto para o separado, o direito a alimentos nos casos de renúncia, por outro, não faltam vozes para sustentar que o separado judicialmente faz jus à pensão alimentícia, ao contrário do divorciado que a renunciou.
O debate no Direito de Família traz conseqüências no âmbito do Direito Previdenciário. Se for defendida a identidade de tratamento, será forçoso reconhecer o direito à pensão por morte ao cônjuge divorciado que comprove necessidade econômica, mesmo diante da renúncia aos alimentos
[16]. Mas, concluindo-se pelo tratamento diferenciado, seria possível concluir pela inexistência do direito ao benefício se o cônjuge divorciado renunciou aos alimentos
[17].
Destarte, para se obter um grau razoável de racionalidade jurídica sobre a questão, é importante pontuar os aspectos relevantes sobre o assunto: (a) a pensão por morte corresponde a uma prestação alimentar, onde o Estado substitui o alimentante; (b) a jurisprudência majoritária admite a renúncia aos alimentos do cônjuge separado judicialmente ou divorciado; e (c) o verbete 336 do STJ afirma que a renúncia aos alimentos na separação judicial não obsta a concessão de pensão por morte em caso de necessidade econômica. Diante desses elementos, podemos tentar chegar a uma conclusão.
A idéia de garantir a pensão por morte mesmo diante da ausência de uma pensão de alimentos, parte da seguinte premissa: há pessoas que têm direito à pensão alimentícia, mas não o exercem. Logo, se no momento do óbito, existe o direito à prestação de alimentos, isso é suficiente para garantir o direito à pensão por morte. Entretanto, se houver renúncia alimentos (eles são renunciáveis), passa a não existir direito à prestação alimentar e, por isso, não deveria haver direito à pensão por morte. O INSS não deveria ser obrigado a pagar o benefício quando o ex-cônjuge não tivesse o direito a receber em vida a pensão. Observe-se que não se está diante de um caso de mera dispensa das prestações mensais, mas de renúncia ao próprio direito a alimentos.
Mas essa não foi a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça. Mesmo diante da renúncia aos alimentos, o Tribunal reconhece o direito à pensão por morte, em posição mais flexível que no Direito de Família. Na relação previdenciária, portanto, a Corte Superior não exige o prévio direito aos alimentos, contentando-se com a comprovação da necessidade econômica.
No Direito de Família, a renúncia, seja no divórcio, seja na separação judicial, extingue o direito aos alimentos
[18]. Logo, no que tange às questões alimentícias, aquela Corte não distingue uma e outro (separação judicial e divórcio). Assim, se não ocorre distinção no campo dos alimentos decorrentes do Direito de Família, não se pode conceder tratamento distinto na seara Previdenciária, sob pena de ofensa à isonomia. Afinal, o texto do art. 76, § 2º da Lei 8.213/91 dá o mesmo tratamento a ambos, afirmando o direito à pensão tanto para o cônjuge separado, quanto para o divorciado, se comprovarem o recebimento de pensão alimentícia. Já que a jurisprudência dispensa, para a separação judicial, o recebimento de alimentos, substituindo-o pela idéia de necessidade econômica, o mesmo deve ocorrer em relação ao divórcio, uma vez que, no que concerne ao sustento do dependente, não há diferença entre as duas situações.
O tratamento diferenciado só faria sentido se o Direito de Família regulasse de forma distinta a renúncia aos alimentos no divórcio e na separação judicial. Como os dois casos recebem o mesmo tratamento, impedindo a formulação de novo pedido de pensão, não há um critério razoável de distinção entre o separado e o divorciado. Por isso, o tratamento, no campo previdenciário, deve ser o mesmo para ambos, aplicando-se o verbete 336 do STJ aos casos em que a renúncia aos alimentos é realizada no divórcio.
Com a mudança da exigência de dependência para necessidade econômica, tanto em casos de separação judicial, quanto de divórcio, surge uma outra questão: a necessidade pode se manifestar após a morte do segurado?
Há quem responda afirmativamente à questão
[19], focando, exclusivamente, a necessidade econômica. Assim, um cônjuge divorciado que no momento da morte não passava por dificuldades financeiras poderia, 20 ou 30 anos depois, advindo a necessidade econômica, requerer pensão pela morte do segurado (ocorrida 20 ou 30 anos antes). Tal interpretação, todavia, além de produzir um resultado pouco razoável, gera um distanciamento ainda maior do texto legal, extrapolando o conteúdo que pode ser extraído do art. 76, § 2º da Lei 8.213/91. Se a jurisprudência já precisa de um grande esforço de argumentação para substituir a dependência pela necessidade econômica, não existe como sustentar que tal necessidade poderia ser originada após o fato gerador padrão do benefício. O raciocínio contrário fere profundamente todo o sistema do Regime Geral de Previdência, pois os requisitos para a obtenção da pensão por morte devem estar presentes na época do óbito.
Assim, quando o verbete 336 fala em “necessidade econômica superveniente”, refere-se a uma dependência manifestada após renúncia, mas antes da morte.
4. Cota da pensão do ex-cônjuge
O ordenamento jurídico anterior tratava a pensão por morte do ex-cônjuge como pensão alimentícia, prevendo o seguinte:
Decreto 89.312/1984, Art. 49, § 2° - O cônjuge que, embora desquitado, separado judicialmente ou divorciado, está recebendo alimentos, tem direito ao valor da pensão alimentícia judicialmente arbitrada, destinando-se o restante à companheira ou ao dependente designado.
[20] Alterando a disciplina da matéria, a Lei 8.213/91, em seu art. 76, § 2º, estabelece a igualdade de condições entre o ex-cônjuge e os dependentes inseridos no rol do art. 16, I
[21]. Outrossim, de acordo com o art. 77, havendo mais de um pensionista da mesma classe, a pensão será rateada entre todos em partes iguais.
A análise do texto legal não nos parece permitir outra conclusão: as cotas da pensão devem ser iguais para todos os dependentes, inclusive para o ex-cônjuge, independentemente do valor da pensão alimentícia
[22],
[23]. Assim, pouco importa quanto o ex-cônjuge recebia do segurado em vida. As cotas terão o mesmo valor para cada beneficiário.
O dispositivo legal é de clareza cristalina: (a) o ex-cônjuge concorre em igualdade de condições com os dependentes elencados no art. 16, I da Lei 8.213/91 (art. 76, § 2°); e (b) havendo mais de um dependente, a pensão por morte será rateada em partes iguais (art. 77). Apesar da interpretação literal não servir como melhor instrumento do processo hermenêutico – devendo ser somada à interpretação sistemática e à ponderação – não há como se negar valor ao sentido prima facie extraído do texto legal. Como ensina Jane Reis Gonçalves Pereira:
Nessa linha de raciocínio, a maior ou menor clareza do texto normativo importará em maior ou menor grau de liberdade ao intérprete, ou seja, quanto mais ambíguo o texto maior o ‘poder de interpretação’ jurídica. Como averba Cristina Queiroz, ‘existe uma relação inversamente proporcional entre clareza do texto da norma e o poder de interpretação conferido ao operador jurídico. É, pois, essa precisão ou vaguidade dos textos jurídicos que distribui de forma variável os poderes do legislador e do juiz’.
[24] Mas, além do hialino conteúdo do dispositivo legal, há outros elementos que permitem reforçar tal conclusão. Em primeiro lugar, como adrede analisado, é possível a concessão do benefício a ex-cônjuge que não recebia pensão alimentícia. Então se indaga: se não for realizada uma divisão em partes iguais, qual será o valor da cota do ex-cônjuge?
Por outro lado, qual o sentido em manter a alíquota da pensão alimentícia (que incide sobre a remuneração do segurado), se a base de cálculo do benefício previdenciário é absolutamente diferente (ao menos a de um segurado em atividade)? A manutenção do percentual, alterando-se a base sobre o qual incide é medida desprovida de qualquer justificativa.
Algumas decisões justificam a manutenção do mesmo coeficiente de cálculo da pensão alimentícia como forma de preservar a autoridade da coisa julgada formada no Juízo de Família
[25]. Todavia, a discussão do benefício previdenciário está fora dos limites subjetivo e objetivo da coisa julgada. A decisão naquela esfera não vincula o INSS, pois este não participa da relação processual. Por outro lado, a relação previdenciária é muito distinta da relação de família, uma vez que seus fundamentos e objeto são diferentes, não se podendo estender os efeitos da coisa julgada para a relação de seguro social.
Outros julgados afirmam que as quotas das pensões alimentícias devem ser mantidas em nome do princípio da isonomia, no seu prisma material. Em razão da diferença entre o ex-cônjuge e o cônjuge, estaria justificada a utilização de coeficientes díspares
[26]. Entretanto, olvidam-se que a fixação da cota previdenciária com a mesma alíquota da pensão alimentícia pode gerar profundas distorções e situações não isonômicas em relação aos demais segurados. Basta imaginar uma situação em que o segurado, ao falecer, tem como dependentes quatro filhos e um ex-cônjuge, para quem pagava pensão de 30% de seu salário. Fixando cotas idênticas, cada dependente teria direito a 20% (1/5) da pensão. Mas, seguindo o percentual da pensão alimentícia, o ex-cônjuge ficaria com 30%, enquanto a cada um dos quatro filhos caberia 17,5%. Essa divisão desigual não passa pelo crivo do princípio constitucional da isonomia.
Conclui-se, desse modo, pela necessária divisão do benefício entre o ex-cônjuge e os demais beneficiários em cotas igual valor
[27].
5. Conclusão A pensão por morte devida ao ex-cônjuge ainda dá margem a muitos debates, pois a disciplina legal da matéria não esgota o assunto, deixando de normatizar pontos relevantes para a pacificação de controvérsias. Nem mesmo a edição do verbete 336 pelo Superior Tribunal de Justiça foi capaz de trazer diretriz para a uniformização da jurisprudência. Assim, é fundamental continuar o esforço para se estabelecer entendimentos coerentes e lógicos, sem contradições entre o Direito Previdenciário e o Direito de Família.
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