terça-feira, 19 de fevereiro de 2013


DECADÊNCIA DO DIREITO DO INSS REVER OS BENEFÍCIOS DOS EX-COMBATENTES
- proteção da confiança x legalidade - 



A proteção previdenciária dos ex-combatentes surge com a Lei 4.297, de 23 de dezembro de 1963, com a garantia de aposentadoria, aos 25 anos de serviço, no valor correspondente à média das remunerações dos últimos 12 meses antes da concessão (art. 1º), com reajuste paritário aos trabalhadores ativos da mesma categoria (art. 2º). A lei ainda garantia a pensão por morte no valor de 70% do salário ou dos proventos auferidos pelo ex-combatente (art. 3º).

Entretanto, a Lei 5.698, de 31 de agosto de 1971, revogou a Lei 4.297/63, para aproximar os benefícios dos ex-combatentes aos demais garantidos pelo Regime Geral de Previdência Social, ficando estabelecidas apenas duas peculiaridades: (a) tempo de serviço de 25 anos; e (b) auxílio-doença e aposentadoria de qualquer espécie com renda mensal de 100% do salário-de-benefício.

Destarte, a aposentadoria do ex-combatente passou a ser calculada com base na média dos 36 maiores salários-de-contribuição e a ficar limitada ao teto do Regime Geral de Previdência Social, correspondente à época a 10 salários mínimos. Porém, em atenção ao princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios, o segurado que já percebia aposentadoria com renda superior ao teto não teve seu benefício reduzido (art. 4º), apesar de ter tido congelada a parcela da renda superior ao limite legal (art. 5º). A sistemática legal é perfeita: admite a mudança do critério de reajuste da aposentadoria, por ser tratar de regime jurídico; mas não autoriza a redução nominal do benefício.

Uma nova alteração relevante na disciplina normativa dessas prestações ocorre com o art. 53 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que garante ao ex-combatente uma aposentadoria com proventos integrais, aos 25 anos de serviço, em qualquer regime jurídico. Surge, então, uma dúvida quanto ao significado da expressão “proventos integrais”.

Em um primeiro momento, a Administração Pública entendeu que a indigitada expressão corresponderia ao valor integral da última remuneração, ultrapassando o teto previdenciário. Vale destacar que, mesmo quando a limitação dos benefícios do Regime Geral ganhou status constitucional, com a Emenda 20/98, o INSS e o Ministério da Previdência Social insistiram no entendimento de que a previsão do art. 53 do ADCT determinava o pagamento sem a aplicação do teto, como se infere do Parecer/CJ nº 2.017, de 01 de fevereiro de 2000:

"Sendo assim, não cabe a aplicação do teto de R$ 1.2000,00 (mil e duzentos reais) fixado pelo art. 29, § 2º, da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1.991 e pela Emenda Constitucional nº 20, de 16 de dezembro de 1.998, que a princípio deveria ser aplicada a todos os segurados do Regime Geral de Previdência Social.
Os benefícios pagos a ex-combatentes são exceções a regra geral. Estabelecem um tempo de serviço menor, 25 (vinte e cinco) anos, e o pagamento de proventos integrais, reitera-se.
Ante o texto constitucional expresso determinando que estas aposentadorias tenham o valor integral da última remuneração dos beneficiários, ou seja, de seus salários na atividade, não é possível estabelecer o limite aplicado aos demais segurados do RGPS."

Entretanto, no Parecer/CJ nº 3.052, de 06 de maio de 2003, o Ministério da Previdência Social mudou de opinião e passou a sustentar “que o termo ‘proventos integrais’ inserto no citado dispositivo constitucional não estabelece forma de cálculo ou reajuste de benefício previdenciário, pelo que a integralidade dos proventos ali referida não corresponde à integralidade da remuneração do beneficiário, se na ativa estivesse. Assim, os proventos integrais assegurados no texto constitucional são os que a legislação previdenciária estabelece como tais”. Desse modo, afirmou:

d) em face do que dispõe a Lei nº 5.698, de 31 de agosto de 1971, a renda mensal inicial das aposentadorias concedidas aos ex-combatentes segurados da Previdência Social e seus dependentes, a partir da vigência do seu texto, deve corresponder a 100% (cem por cento) do salário-de-benefício definido e delimitado na legislação comum da previdência social. Dito de outra maneira, a concessão de benefícios previdenciários a ex-combatentes e seus dependentes, a partir da edição da norma legal antes citada, deve se sujeitar às regras comuns aos demais segurados do Regime Geral da Previdência Social, inclusive no que toca ao limite máximo de valor e forma de reajuste dos benefícios determinado por este mesmo Regime.
e) quanto às aposentadorias e pensões concedidas a esse mesmo título sob a égide de diploma legal anterior à Lei nº 5.698, de 1971, devem ser os seus valores revistos, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, na forma seguinte: garantida a concessão de aposentadoria com proventos integrais aos 25 anos de serviço, conforme determina o artigo 53 do ADCT da CF/1988, deverá se observar, para o cálculo do novo valor do benefício, a lei vigente no momento em que foram preenchidos os requisitos para a sua obtenção, aplicando-se, após a revisão prescrita no artigo 58 do ADCT, o critério de reajuste previsto na Lei nº 5.998, de 1971 (art. 5º e 6º). Após a revisão estabelecida no texto constitucional, os reajustamentos das referidas prestações não incidirão sobre a parcela excedente ao limite máximo de valor dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social 

A conclusão do parecer de 2003 está correta. O art. 53 do ADCT não garante a concessão do benefício calculado com integralidade, mas com proventos integrais. Fosse garantida a integralidade, a base de cálculo seria a última remuneração. Porém, como o texto constitucional fala em proventos integrais, apenas garante o coeficiente de cálculo de 100%, sem especificar a sobre que valor incidirá, remetendo, por conseqüência,  à legislação vigente à época aquisição do direito.

Ocorre que diversos benefícios foram concedidos há muitos anos de acordo com a sistemática anterior. Amparados pelo posicionamento da Administração Pública, os beneficiários receberam – com absoluta boa-fé – uma renda mensal superior a teto previdenciário.

O valor dos benefícios estava em desacordo com a melhor interpretação do art. 53 do ADCT, uma vez que deveria obedecer às limitações do Regime Geral de Previdência Social. Entretanto, o erro foi provocado pela Administração Pública, sem que o segurado tivesse contribuído em qualquer medida para a materialização do equívoco. Ao contrário, como esse era o entendimento adotado pelo INSS, tinha a legítima expectativa de contar com proventos apurados na forma indicada pela Administração à época.

Ocorre que, buscando dar efeitos retroativos ao seu novo entendimento, o INSS passou a rever uma série de aposentadorias e pensões concedidas sem a limitação ao teto.

Evidentemente, é legítimo o esforço da Administração Pública para controlar seus atos já emitidos, sendo seu poder-dever a anulação de atos administrativos ilegais. Ocorre que o princípio da legalidade deve ser ponderado com o da confiança legítima, criando limites à atividade estatal de auto-tutela, como a fixação de prazos para que a Administração reveja seus próprios atos.

Inicialmente, o prazo foi fixado em 05 (cinco) anos, pela Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Posteriormente, a Lei º 10.839, de 05 de fevereiro de 2004, cria prazo específico, de 10 (dez) anos, para Previdência Social anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os seus beneficiários (art. 103-A, Lei nº 8.213/91). 

Isso quer significar que após o prazo decenal consolidada-se o direito ao recebimento de um benefício superior ao teto da previdência social, sem que o INSS possa rever o critério de cálculo da renda mensal inicial ou passe a limitá-lo com base no valor máximo das demais prestações previdenciárias. Em resumo: é proscrito à autarquia rever a renda do benefício.

A questão ganha ares mais complexos quando se trata de uma pensão por morte. Com o óbito do segurado, os dependentes adquirem o direito a uma pensão, calculada com base na aposentadoria. Surgem, então, algumas perguntas: a decadência do direito de revisão do ato de concessão da aposentadoria continua a existir após o óbito do segurado? É possível, para conceder uma pensão por morte, rever a renda da aposentadoria precedente, ainda que sua concessão tenha ocorrido há mais de 10 anos?

A resposta deve ser negativa. A pensão deve ser calculada de acordo com a lei vigente à época do óbito. Se o INSS não podia rever o valor da aposentadoria, o benefício do dependente tem que se apurado tendo como base de cálculo a renda previdenciária para ao ex-combatente. Isso ocorre por dois motivos: (a) autorizar a revisão da renda da aposentadoria seria uma afronta ao comando legal que “pune” a inércia da Administração por mais de 10 anos; e (b) ao deixar de revisar a renda da aposentadoria, o INSS gerou expectativa legítima na dependente que não pode, agora, ser surpreendida por uma medida extremamente restritiva, capaz de colocar em xeque projetos de vida alimentados pela postura administrativa antecedente.

O princípio da confiança (ou da confiança legítima), corolário da segurança jurídica, assume especial importância no Direito Administrativo e, por conseguinte, no Direito Previdenciário. Isso porque, tendo em vista a presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, cria-se no cidadão a expectativa de que a conduta da Administração Pública seja válida. Nas palavras de Gustavo Binenbojm:

O ponto nodal da questão está na circunstância de que o cumprimento da lei administrativa é, via de regra, mediado pela Administração Pública. Dito de outra forma, é a Administração normalmente responsável pela aplicação (mais ou menos mecânica, mais ou menos construtiva, conforme a disciplina da lei) dos comandos legais. Como condição para o desempenho de seus misteres, admite-se que os atos administrativos – como as leis – desfrutam de uma presunção de legitimidade, que despertam nos particulares, de ordinário, uma legítima confiança de que tenham sido editados em conformidade com o direito.

Pois bem. Tendo agido subjetivamente de boa-fé (boa-fé subjetiva), confiando legitimamente em uma situação digna de confiança gerada pelo Poder Público (standard de comportamento leal e confiável médio que se aproxima da boa-fé objetiva) e tendo orientado efetivamente a sua conduta em conformidade com essas premissas, não é justo, em maioria de casos, que essa confiança legítima do particular seja frustrada por uma mudança de posição do Estado – seja ela decorrente da invalidação de um ato administrativo ilegal ou da declaração de inconstitucionalidade de uma lei.
(BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 181-182.)

Evidentemente, infere-se a necessidade de boa-fé subjetiva para que a expectativa seja legítima e tutelável. Em outras palavras, é necessário que o administrado acredite, realmente, na legalidade do ato da administração. Hartmut Maurer ensina:

Pressuposto para a proteção à confiança – tanto em notificações de prestação pecuniária como em outros atos administrativos – é que o beneficente (1) confiou na existência do ato administrativo e (2) sua confiança seja digna de proteção sob a ponderação com o interesse público em uma retratação. Essa fórmula geral ainda é concretizada pela lei em sentido diferente. A dignidade de proteção não tem lugar de antemão se o beneficiado obteve o ato administrativo antijurídico por engano, ameaça ou corrupção dolosa, ademais se ele obteve o ato administrativo por declarações falsas ou incompletas, enfim, também então, se ele conhecia a antijuridicidade cai no âmbito da responsabilidade do favorecido.
(MAUERER, Harmut. Elementos de direito administrativo alemão. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegra: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 72-73.)

Na maior parte dos casos, pensionistas e instituidor da pensão manifestam absoluta boa-fé subjetiva, uma vez que pautaram sua expectativa no comportamento da Administração Pública que, de modo fundamentado (apesar de equivocado) adotava critério distinto para o cálculo do benefício.

Desse modo, deve o benefício continuar a ser calculado tendo como base de cálculo da renda mensal da aposentadoria do segurado falecido, mesmo que superior ao teto do Regime Geral de Previdência Social.

A questão, todavia, ainda é carente de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que, todavia, já reconheceu a repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 699.535, o qual deverá fornecer uma resposta definitiva ao problema.